Por
Enilson Heiderick
O
livro de Jó, considerado o mais antigo livro das escrituras, inicia falando da
prosperidade de Jó e de seu relacionamento com Deus que, conversando com
Satanás, cobre Jó de elogios. O Acusador não perde a oportunidade de alfinetar
o Altíssimo e põe em dúvida se tal fidelidade não é mais fruto de uma barganha
do que de intimidade verdadeira. Ao ser provocado, Deus permite que Satanás
tenha poder para atormentar a vida de Jó e assim provar qual a origem da sua
fidelidade. Começa aí o seu infortúnio.
Neste
grande drama há alguns personagens que vão buscar durante o decorrer da
história encontrar respostas para o sofrimento de Jó e, por extensão, debater
sobre a origem do sofrimento humano em um mundo governado por um Deus justo e
bom. Zofar, Bildade e Elifaz se revezam em discursos que ora insinua, ora
afirma que deve existir algum pecado em Jó, nem que seja oculto, e que seu
sofrimento é justo, pois de Deus não se pode esperar outra coisa. Tais
discursos são rebatidos por Jó que reafirma reiteradamente sua inocência e
continua a se perguntar sobre o porquê de seu sofrimento. O jovem Eliú faz um apanhado
geral enfatizando a soberania e sabedoria de Deus condenando todos os demais,
tanto os amigos, quanto o próprio Jó. Por último o próprio Soberano do universo
se revela a Jó e não lhe dá resposta alguma, a não ser reafirmar sua soberania
o que, paradoxalmente, é resposta mais que suficiente para Jó que ao final
responde “antes te conhecia só por ouvir falar, mas agora meus olhos te vêem”.
A
mulher de Jó, esta mulher sem nome, como tantas outras mulheres da Bíblia –
lembremos que até mesmo aquela que ungiu Jesus com alabastro e da qual Cristo
disse que jamais seria esquecida por causa do seu gesto, também permanece
anônima – era apenas uma coadjuvante.
De
todos os personagens da narrativa, ela é quem tem a menor fala e menor espaço
para se expressar. Não foi dado a ela o mesmo destaque dado aos discursos eloquentes
e vazios de Zofar, Bildade, Elifaz, nem teve a honra de ser a última a
discursar, como o jovem Eliú. Sua participação foi um átimo, um único versículo
que serviu para encerrá-la para sempre no panteão das mulheres vilãs da Bíblia
com a companhia nada honrosa de Jezabel, Safira, a mulher de Ló – mais uma
anônima – e outras menos cotadas.
No
imaginário judeu/cristão a mulher de Jó sempre foi considerada como o protótipo
da mulher insana, afetada, sem juízo, e antagônica a seu marido. Tudo por causa
de sua única fala.
Como
eu não estou aqui para ser mais um a jogar pedras, gostaria de mais uma vez,
como sempre fazemos aqui no nosso espaço, convidar você a me acompanhar em mais
uma viagem para além da tradição e dar a esta mulher o benefício da dúvida, nos
permitindo entrever algo de belo em seu gesto e nos surpreender com uma
inesperada lição da graça de Deus, mesmo quando Ele permite algo que para
muitos de nós soa contraditório.
“Amaldiçoa
seu Deus e morre”. Esta foi a frase que fez com que ela caísse em desgraça aos
nossos olhos. Uma única frase, perdida lá no versículo nove do capítulo dois do
livro, mas que serviu de argumento para o seu linchamento moral. Linchamento
moral é algo que fazemos com enorme facilidade, mas que tal irmos para além da
frase? Que tal buscarmos as motivações que a levaram a esta atitude extrema?
Que tal averiguarmos se esta mulher é tão indigna e condenável para Deus quanto
os nossos julgamentos determinam?
A
mulher de Jó não é alguém que aparece do nada na história, não é uma transeunte
que passa aleatoriamente e resolve dar sua opinião, não é sequer como os amigos
de Jó que se compadeceram dele e lhe fizeram companhia, mas que depois disso
iriam para suas casas e suas vidas. Não, ela era a pessoa mais próxima de Jó. E
se Jó sofreu com os infortúnios que caíram sobre ele, ela também sofreu junto e
amargou todas as perdas. Diferente dos amigos de Jó, ela estava padecendo
conjuntamente do mesmo mal que se abateu sobre seu marido. Ela perdera seus
filhos, sua casa, seus bens, sua dignidade e, naquele momento, via o homem a
quem havia devotado uma vida ali, sobre um monturo, cheio de chagas malignas
que iam da cabeça aos pés, coçando-se com um caco para aliviar sua agonia.
Nada
mais injusto! Pensava ela.
Mais
do que ninguém ela sabia da injustiça daquela punição. Era ela quem presenciava
quando Jó chamava seus dez filhos para os santificarem, mesmo já sendo adultos.
Era ela quem acordava à noite, tocava na cama procurando seu marido e não o
encontrava, ia achá-lo na madrugada fazendo sacrifícios a Deus por amor à vida
de seus filhos, que foram mortos todos de uma vez sem razão aparente. Era ela
quem presenciava dia a dia a integridade e retidão de Jó em todas as coisas.
Nos negócios, na família, entre os mais necessitados e na vida conjugal.
A
mulher de Jó foi o único personagem que lhe reconheceu a inocência. E
exatamente por não ver em seu marido falha alguma a ponto de receber tão grande
punição é que ela se revolta em um desabafo desesperado, sim desabafo de quem
vê sua vida ruir da noite para o dia, de quem tinha uma vida em paz e temor a
Deus e que se vê saqueada, sem seus filhos, sem ter como se sustentar e vendo o
homem a quem amava em agonia de morte.
“Assim
como fala um louca, falas tu” é a repreensão que ela ouve de Jó e, após ouvir
estas palavras, cala-se, não contra-argumento, nem rebate, apenas cala-se, como
a reconhecer seu erro, ao contrário dos amigos que em nenhum momento deram
descanso e só foram reconhecer o mal que fizeram depois que o próprio Deus
ordenou.
A
mulher de Jó representa este grito angustiado que eu e você temos no peito
todas as vezes que sofremos as injustas peças pregadas pela vida. É a voz que
clama por um mundo em que haja algum tipo de lógica, em que os maus sejam
efetivamente punidos e os bons recebam de Deus benevolência. Ela é a porta-voz
que nos mostra que nem sempre as coisas fazem sentido, que injustiças acontecem
com pessoas boas e a nossa teologia nem sempre consegue responder. É a
testemunha de que todos nós, em algum momento da vida, também nos revoltamos
contra Deus.
Enfim,
ela é muito parecida conosco, talvez por isso nós a repudiamos. Pois somos tão
envolvidos e contaminados por idealizações que não reconhecemos quando vemos
nossa própria face no espelho.
Mas,
apesar de todos os nossos preconceitos e condenações. Apesar de todo o estigma
que ela sofreu posteriormente. Deus, que é quem verdadeiramente sonda e conhece
os corações e as motivações, honrou-a ainda em vida. Sim, pois Deus
devolveu-lhe a saúde do marido, restituiu-lhe os bens e, suprema honra para as
mulheres da antiguidade, deu-lhe mais dez filhos.
E,
para confirmar que Ele entende nossas angústias e dúvidas mais do que nós
mesmos gostamos de reconhecer e que Sua graça alcança até mesmo àqueles que
para nós são execráveis, Ele, o Único a quem cabe estabelecer justiça, não
lançou nenhuma palavra de crítica ou de condenação a esta louca mulher que teve
a coragem de expressar livremente sua dor.
Pastora, Maria Valda |
- See more at:
http://www.searanews.com.br/a-mulher-de-jo-reu-ou-inocente/#sthash.FxcvEFF7.dpuf
Fonte: http://www.searanews.com.br/a-mulher-de-jo-reu-ou-inocente/
Nenhum comentário:
Postar um comentário