Acho que todo mundo já ouviu falar na top model somali que foi circuncidada e fugiu de seu país. A história dessa moça é triste, mas de superação, e merece ser contada. Ela se chamaWaris Dirie e hoje é embaixadora da ONU contra a causa que fez o mundo tomar conhecimento: a mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês).
Aos cinco anos, Waris teve seu clitóris cortado, bem como os grandes e pequenos lábios. Depois, tudo foi costurado e apenas um buraquinho foi deixado para sair a urina e a menstruação. Se permanecesse na família, e não fugisse aos 13 anos, após ser forçada a casar, a cicatriz deixada pela costura seria cortada à faca pelo marido.
Este era o ritual sagrado do casamento. Eu fico com o estômago revirado e os olhos marejados em pensar que seis mil meninas são submetidas a essa violência física e psicológica todos os dias no mundo todo. Essa mutilação causa dores, infecções e problemas na gestação. Muitas meninas morrem, e muitas mulheres já adultas também morrem por conta da FGM.
O filme Flor do Deserto é baseado no livro que Waris escreveu sobre sua vida (“waris”, em somali, quer dizer “flor do deserto”). Depois de fugir de casa, atravessar o deserto a pé e encontrar sua avó na cidade grande, foi para Londres fazer faxina na Embaixada da Somália. Não desejava retornar ao seu país destroçado pela guerra civil, então passa a viver ilegalmente na capital britânica. Com a ajuda de uma vendedora de roupas, arranja emprego no Mc Donalds e começa a se estabilizar. É na lanchonete que conhece Terence Donovan (Terry Donaldson), famoso fotógrafo de moda que percebeu seu potencial como newface.
Demora a se abrir para esta oportunidade e, quando decide fazer sucesso nas passarelas, descobre que não pode viajar porque seu visto vencera há seis anos. A solução é casar com o síndico da pensão onde mora, rapaz a princípio adorável, mas obstinado em conquistá-la. Depois de um ano, e com visto permanente, Waris ganha o mundo e a imprensa. É para uma jornalista que conta o dia que mudou sua vida. Não era aquele em que Donovan ofereceu se cartão, mas o da trágica tarde em que foi mutilada. O mundo se cala e ela é convidada a ser embaixadora da ONU.
A história é pesada, mas o filme é esteticamente bonito, com cores fortes e belíssimas cenas do deserto. Quem faz o papel de Waris é Liya Kebede, top model etíope que também luta por uma causa nobre – a promoção da saúde materna e infantil. Pelas semelhanças entre a história de Waris e ela (são africanas, modelos e trabalham com a ONU), Liya é natural ao atuar, passa sinceridade na personagem. Já Sally Hawkins estereotipa Marilyn, a amiga vendedora de roupas, poderia ser menos exagerada. O ótimo Timothy Spall (Donaldson) e Craig Parkinson (Neil, o marido) retratam muito bem seus papéis, mas Anthony Mackie (Harold Jackson) parece estar sobrando na trama. Como disse um amigo, Harold não tem muito uma função a cumprir, ou melhor, tem: não tornar a Waris assexuada. Uma pena, porque o rapaz é talentoso.
O fim do filme traz uma carga de engajamento muito grande, que é o da própria vida da Waris, mas, como cinema, não funciona muito. Na vida real – fora das telas –, essa militância torna a história dessa mulher, hoje com 45 anos, ainda mais especial.
Laura Lopes
Nenhum comentário:
Postar um comentário